Mal passa das 8h de uma quinta-feira, 5 de agosto de 2014, e a farmacêutica Dailane Santos Couto já ouve a primeira queixa do dia na Unidade de Saúde da Família Humberto Prazeres, a maior de Muniz Ferreira, cidade do Baixo Sul com quase 8 mil habitantes. Ao ouvir a conversa entre a equipe do CORREIO e a coordenadora da central de medicamentos do posto, a dona de casa Noélia Maria da Conceição, 50 anos, se exalta.

Com uma receita nas mãos, berra: “Tem nada, nunca tem nada aí. Não tem meu remédio de pressão. Procura um antibiótico aí, procura”. Depois de conversar com a paciente exaltada, uma constrangida Dailane pede que a reportagem procure o secretário de Saúde, Rogério Santos.

Antes, porém, relata: “Até dezembro, a gente não tinha tantos problemas com o repasse do estado, mas de lá para cá ficou muito complicado. Medicamentos de hipertensão e diabetes, fitas para medição de glicemia capilar, então, que o estado deveria fornecer, a gente só tem porque compra com recursos próprios”.

Naquela manhã, o secretário  estava em Salinas da Margarida, a 43 quilômetros de Muniz Ferreira. Foi conversar com sua colega, Bárbara Badaró, justamente sobre problemas enfrentados pelas duas cidades e o quanto uma poderia ajudar a outra.

Na prefeitura de Salinas, Rogério desabafa. Diz que, atualmente, faltam nos seus estoques mais da metade dos medicamentos da atenção básica que são fornecidos pelo estado - uma lista de 94 itens, segundo a última resolução do Comitê Intergestores Bipartite (CIB), que regulamenta as relações entre estado e municípios.

“Toda vez que formulamos um pedido, criamos expectativa em atender uma determinada demanda. Saúde não é brincadeira, depende de planejamento. Mas a Cefarba (Central Farmacêutica do Estado) não manda, manda em atraso, em quantidade insuficiente, com lotes perto de vencer. Aí temos que pagar do nosso bolso para reduzir o impacto. Nas reuniões da CIB, todos os municípios baianos fazem as mesmas queixas”, conta. Leia mais...

Zero

Em Salinas, cidade banhada pelas águas da Baía de Todos os Santos, só apelando para eles. Segundo a secretária do município, a cidade não recebe um só comprimido do governo do estado desde 2013. Segundo Bárbara, a origem da exclusão de Salinas da lista da Cefarba veio de uma falha da antiga gestão.
“Não foram digitadas as notas de compra de medicamentos com a contrapartida de 25% do município no Sigaf (Sistema que Gerência à Assistência Farmacêutica) de 2010 e 2011. Ficamos bloqueados logo depois que assumimos. Mas nem nós e, sobretudo, nem a população têm culpa por isso, não podem ser penalizados por erros passados”, avalia. No momento, o município arca sozinho com a conta de cerca de R$ 50 mil mensais.

Apesar de não enviar uma pílula sequer ao município, mesmo recebendo o repasse feito pela União, o governo do estado inaugurou com pompa e festa, em 4 de janeiro, uma unidade do Programa Farmácia da Bahia no Hospital de Salinas. “Olha só que ironia! Ganhamos esse espaço, mas somos nós que arcamos com o custo para encher as prateleiras. Eles não ajudam a abastecer”, salienta.

Bárbara, no entanto, afirma que só nos últimos dois meses, ela conseguiu respirar. “Só temos esse estoque hoje porque conseguimos concluir a licitação. Mas até lá foi um sufoco para todo mundo, do médico, que quer manter um tratamento regular e não consegue, pela falta de medicamento, ao SUS, que por não cuidar da atenção básica vai acabar pagando muito mais caro depois”, avalia.

Médio porte

Preço alto, por exemplo, é o que paga atualmente o município de Nazaré, cidade histórica às margens da BA-001. Lá, além da falta de medicamentos nos cerca de dez postos de atenção básica do município, a população tem coisa mais grave para lidar: o fechamento do Hospital Gonçalves Martins, a reboque de outra grave crise, o das Santas Casas de Misericórdia em todo o país.

Em Valença, a maior e mais movimentada cidade do Baixo Sul, com quase 100 mil habitantes, a assistente administrativa da Central de Abastecimento Farmacêutico Silva Pires está mais animada. Desde outubro de 2013 sem o repasse de remédios do governo do estado, ela havia acabado de receber uma nova remessa.

“Ainda assim, não foram enviados vitamina A, Benzetacil, alguns medicamentos de hipertensão e diabetes, antibióticos. Anticoncepcional, o município acaba comprando, porque não vem ou vem em pouca quantidade”, afirma.

Diferenças Vizinhas

As cidades de  Valença, Cairu e Taperoá vivem situações distintas. Na primeira, a secretária de Saúde, Carla Maiara, tem o tamanho do déficit de medicamentos milimetricamente calculado.

Até julho deste ano, a Sesab devia ao município R$ 90.029, referente aos 50% da União, mais 25% do governo. Por outro lado, faltam só R$ 4.893 para que a prefeitura execute toda sua contrapartida no programa até 31 de dezembro, de um total de R$ 37 mil.

“Isso significa que somos nós que estamos bancando a conta que cabe ao governo. O que eles nos envia, ou não vem ou vem em quantidade menor”, diz. Da lista de 92 itens pedidos por Cairu em 30 de julho, a Cefarba só entregou 40. Mesmo assim, a central farmacêutica da cidade está cheia. ”O município não deixa faltar, porque as finanças são saneadas. Nós até emprestamos para Taperoá”, conta.

Em Taperoá, a equipe do CORREIO é hostilizada e barrada pelos coordenadores da Liga de Assistência Médica, a maior unidade da atenção básica da cidade. Na porta do posto, porém, dá para flagrar vários pacientes indo com receitas e voltando de mãos vazias.

Uma delas, Joseane Santos, 20 anos, lamenta apenas ter voltado sem as vitaminas e o anti-inflamatório receitados para sua filha de 3 anos. Ela já nem liga mais para o anticoncepcional injetável que tenta buscar há quatro meses.

Comunidade quilombola sofre com crise na atenção básica

Fora das zonas urbanas, a falência na distribuição de remédios se mistura ao cenário de abandono na rede de atenção básica. Na comunidade quilombola do Jatimane, a 22 quilômetros de Nilo Peçanha, os cerca de 400 moradores que sobrevivem do beneficiamento da piaçava enfrentam dificuldades de toda sorte no único posto de saúde do lugar.
No início de agosto, a unidade estava fechada. “É que só tem uma funcionária e ela teve que viajar. Mas é gente boa, faz o que pode, só não há muito o que fazer. Médico aqui é igual a trovoada. De vez em quando aparece. Remédio chega para uns tipos de doença, falta pra outros, é assim”, diz Alaíde Zilda Rosário, idosa que diz não lembrar quanto anos tem, mas recorda que já enfrentou “problemas de pressão e de açúcar alto”.

Mesmo que tivesse repasses de remédios regularizados, ficaria difícil mantê-los em condições adequadas. A unidade de saúde funciona de maneira improvisada em um antigo posto telefônico. O imóvel, um casebre de porta e janela, tem parte dele tomada por sujeira e restos de obras de ampliação que nunca terminaram.

O Jatimane é só uma das dores de cabeça da secretária de Saúde de Nilo Peçanha, Sony Lopes. “Os problemas de rapasses de medicamentos pelo governo são sérios. Existem desde que assumi, em 2013. Diabetes e hipertensão é onde a gente mais sofre. Sobretudo porque temos comunidades quilombolas onde é alta a incidência dessas duas doenças”, afirma.

Financiamento se tornou insuficiente, justifica Sesab

A crise que colocou na UTI o setor de distribuição de medicamentos para a atenção básica é de conhecimento da do governo do estado há pelo menos sete meses. É o que comprova um comunicado interno distribuído pela  Sesab em 24 de janeiro.

À época, o então coordenador de Ações Logísticas da Assistência Farmacêutica da Sesab, Lucas Duarte, citava atrasos no repasse dos recursos federais, problemas de fornecimento por parte de laboratórios e dificuldades orçamentárias antes de sugerir “a suspensão temporária do atendimento, por um prazo não inferior a 20 dias”.

Segundo o mesmo comunicado, a indicação era motivada também pelo “número elevado de faltas dos medicamentos (...) sob responsabilidade do estado”. Hoje diretor da Assistência Farmacêutica da secretaria, Duarte reconhece o agravamento da crise em 2014, mas atribui os problemas na distribuição de medicamentos a pacientes da  atenção básica à incapacidade financeira do SUS.
“Houve um aumento muito grande da demanda e do acesso na área de medicamentos, mas há também subfinanciamento. Hoje, você tem um elenco enorme de componentes que o município tem que ofertar. São 347, 94 deles de obrigação do estado, mas já não temos os mecanismos orçamentários, e também administrativos, para ofertar tudo que foi proposto”, justifica.

Segundo Duarte, o elenco de medicamentos do chamado Componente Básico da Assistência Farmacêutica, norma que determina o que deve ser distribuído gratuitamente pelo SUS, cresceu muito nos últimos anos, mas os valores para financiamento ficaram estagnados. Embora haja atrasos no repasse do Ministério da Saúde para a compra de remédios, Duarte diz que eles nunca ultrapassam 60 dias.

“O problema  é financeiro, mas não desse tipo. Veja só. Dos 94 itens (obrigatórios do estado), se for comprar  todos eles, isso vai ultrapassar os valores estabelecidos na portaria, referente à contrapartida obrigatória (dos governos e das prefeituras)”, explica.

Trocando em miúdos, Duarte alega que a necessidade de remédios se tornou maior do que a capacidade de oferta planejada pelo poder público. “Mas já estamos começando a regularizar os estoques para uma parte do elenco e também nos reunindo com os municípios para propor, conjuntamente, algumas soluções. Eles estão começando a entender que será preciso priorizar aquilo que é mais importante”, afirma.

Fonte: Correio 

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