O nome de Aly Muritiba tem sido recorrente nas notícias de cinema. O cineasta baiano, que mora em Curitiba, levou dois prêmios na última edição do É Tudo Verdade pelo curta-metragem Pátio. Agora, chega à França com o mesmo filme para participar da Semana da Crítica, mostra paralela do Festival de Cannes. O festival tem início nesta quarta-feira (15) e vai até o dia 26 e a Semana da Crítica começa um dia depois.
Não que essa situação seja muito estranha ao diretor. Seu curta anterior, A Fábrica, viajou o mundo por festivais e foi um dos 11 curtas-metragens pré-selecionados para o Oscar deste ano. Nada mal para alguém que iniciou a faculdade de cinema para criar amigos e arranjar uma coisa para fazer, já que estava desempregado após se mudar para Curitiba – distante do tradicional eixo Rio-São Paulo e de Pernambuco.
O BlogDoc conversou com o diretor sobre a Trilogia do Cárcere – que inclui os dois premiados curtas -, as expectativas para Cannes e o cenário do curta-metragem hoje. Veja a entrevista.
De onde surgiu a ideia para o curta-metragem Pátio?
Aly Muritiba - Eu estou fazendo uma trilogia [Trilogia do Cárcere]. Todos esses filmes surgiram da experiência que eu tive. Trabalhei como agente penitenciário durante sete anos e pude não apenas ver o sistema de dentro para fora, como fazer parte da engrenagem dele. Isso me fez olhar as coisas de uma maneira que julguei distinta do que o cinema nacional mostrava. Resolvi fazer os três filmes abordando, cada um deles, uma das partes envolvidas no sistema penitenciário: a família do preso [A Fábrica], o preso [Pátio] e os agentes penitenciários [O Agente].
O que seria distinto na sua visão sobre o sistema e a visão que o cinema normalmente tem?
Aly - A visão que o cinema e a imprensa fazem sobre o sistema penitenciário é muito reducionista e desprovida de propriedade e conhecimento, o que é natural. Essas pessoas nunca estiveram lá dentro, ou estiveram durante duas horas. Toda vez que a imprensa entra numa penitenciária, entra em outro lugar, maquiado, que a direção preparou. Como eu estive lá dentro, eu tive uma visão privilegiada.
Mairiense Aly Muritiba
Como você enxergou esse lugar do pátio de uma prisão, onde se passa o curta?
Aly - Eu enxerguei o pátio como um microcosmo possível de exercício de liberdade dentro daquele ambiente criado para encarcerar corpos. Resolvi inverter a lógica da coisa e prender o espectador, de modo que ele ficasse vendo o preso exercendo a sua liberdade. Por isso o ponto de vista é de trás das grades.
Faustino, um dos detentos do presídio, é uma espécie de personagem principal do curta. Como se deu a escolha dele?
Aly - O Faustino é mestre de capoeira e eu também sou capoeirista. Por esse gosto em comum, e essa coisa da cultura afro, a gente já se conhecia e conversava na penitenciária sobre capoeira e outros assuntos. Vejo a capoeira como uma espécie de exercício de liberdade.
A Fábrica era um curta-metragem de ficção. Por que a escolha de fazer essa segunda parte como documentário?
Aly - Eu não faço grandes distinções entre documentário e ficção. A linguagem de A Fábrica é de um documentário observacional. Em Pátio, o que é contado na sonora é construído de maneira ficcional, de modo que tem começo, meio e fim. Tem uma narrativa clássica lá. O próximo filme é um híbrido. Eu optei por fazer Pátio de maneira documental porque eu acredito que o realismo da situação pedia isso.
Você poderia antecipar como será a terceira parte?
Aly - O Agente conta a história de 28 pessoas que trabalham numa das equipes de uma penitenciária. Mostra o dia a dia desses caras e os embates que eles têm não necessariamente com os presos, mas muito mais com a burocracia administrativa. Há um personagem condutor dessa história, que é o inspetor, que eu filmo dentro e fora da cadeia. Está filmado e quase finalizado. Mas eu vou segurá-lo porque é ruim dois filmes filmados na mesma penitenciária pelo mesmo diretor circulando juntos. No final do segundo semestre, deve começar a carreira em festivais internacionais e, no ano que vem, deve circular no Brasil.
O que você tem achado dessa receptividade por parte dos festivais, depois de A Fábrica já ter também chamado atenção?
Aly - Eu fico muito feliz. Acredito que como A Fábrica surgiu de alguém do Paraná, distante de tudo que está sendo produzido no eixo São Paulo-Rio-Pernambuco, muita gente devia estar me julgando como azarão. Então é bom que Pátio tenha vindo para mostrar que as coisas que nós estamos fazendo no Paraná são consistentes também. Não foi um golpe de sorte.
Quais são as suas expectativas para o Festival de Cannes?
Aly - Minha expectativa é apresentar o meu filme e conversar sobre ele. Como são várias sessões e todas são seguidas de debates com o público e com críticos, eu estou muito ansioso para poder ouvir o que as pessoas têm a dizer. E compartilhar um pouco do que eu penso sobre o filme com elas.
Muitas pessoas veem o curta como um meio para conseguir fazer longas-metragens depois. A sua intenção é continuar fazendo curta?
Aly - Eu não acredito nessa história de curta como trampolim. Acho que quem estiver fazendo curta pensando assim está equivocado. Devia fazer outra coisa da vida e respeitar um pouco mais o formato. Eu espero fazer longas, curtas, séries... Eu quero fazer cinema, não importa a duração. Se o projeto que me mobiliza couber melhor em um curta, será um curta. Se couber em um longa, será um longa. Se couber em uma folha de papel, será um roteiro.
Muita gente acredita também que o curta é um filme só de festival. Você acha que o curta consegue hoje alcançar o público?
Aly - Consegue. Infelizmente, eu não tenho dados porque os festivais e as emissoras não nos mandam. Mas A Fábrica foi exibido em mais de cem festivais, só aí deve ter feito muito público. Ele foi vendido para sete canais de televisão, alguns internacionais. Nessas exibições, deve ter feito milhares de espectadores. Ele é exibido constantemente em cineclubes. Recentemente, uma companhia de teatro do Rio de Janeiro que está montando uma peça que se passa no ambiente carcerário entrou em contato comigo para pedir para exibir durante a peça. Ele vai ser exibido no teatro, em um contexto completamente diferente. Na internet, também dá para atingir um público legal. Então, existe um público para o curta.
Do ponto de vista do mercado, é possível viver fazendo curtas?
Aly - Não, não dá. Ninguém quer pagar pelo seu curta. Quando ele é muito bem-sucedido, como A Fábrica, você consegue vender, mas são vendas feitas a um valor baixo. Você consegue se manter por uns poucos meses e olhe lá. Você vai viver de dar aula, de outra profissão, fazendo festivais, como a gente faz aqui. Mas viver de curta, não. Nem acho que a gente deve fazer pensando em viver de curta.
Por que não?
Aly - Se você for fazer curtas-metragens na esperança de ganhar dinheiro com eles, a possibilidade de você se frustrar é tão grande, mas tão grande, que é recomendado que você nem comece. Não estou dizendo que você não deve tentar ganhar dinheiro com o seu curta. Mas a possibilidade de isso acontecer é muito pequena.
(Por Aline Senzi)